Quem somos
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
Memórias de um Cão
Sinto-me velho, trôpego e sem forças. Os meus olhos e os meus ouvidos traem-me constantemente - não percebo quando me chamam, não distingo o tom em que me falam, nem sequer consigo vislumbrar qual a porta por onde devo entrar ou sair de casa. O próprio olfacto já não se compara com o que era, sendo agora necessário aproximarem-me do nariz os bocados de comida, que dantes eu identificava a metros de distância. Às vezes sinto-me inexplicavelmente confuso e assustado, tremo convulsivamente, descontrolo-me e não sei onde estou nem reconheço os que me rodeiam. Depois passa, mas demoro bastante tempo a recompor-me e fico esgotado, como se alguém me tivesse maltratado.
Passo grande parte do dia a dormir e tenho sobressaltos durante o sono - dizem que gemo, numa espécie de choro aflito e ritmado. Tenho memórias vagas, mas assustadoras, desses pesadelos: prendem-me, sou levado para longe daqueles a quem me afeiçoei, percorro cenários que não conheço, paisagens desertas, sem gente nem bichos, terra queimada, inóspita, e sinto saudades das caras conhecidas e do conforto da casa a que me habituei e onde me sinto tão seguro. Fico aterrado, sobretudo por ter de enfrentar o desconhecido, depois de tantos anos a viver num lugar acolhedor, onde sempre me movimentei com à vontade e onde todos se mostram simpáticos e compreensivos.
Sempre gostei da rotina dos meus dias nesta casa de campo, conseguindo aliar o conforto e a estabilidade a uma vida livre, de corajoso aventureiro, certo de poder contar no regresso das minhas deambulações pela aldeia, com um bom prato de comida, umas festas e um canto confortável para descansar, mesmo sabendo que às vezes me esperava um ralhete, por parte de quem se preocupou desde sempre com a minha segurança.
Nasci há 15 anos, num dia de Primavera, numa pequena aldeia aninhada nas faldas da Serra de Aire. Dois meses depois, apareceu por lá um grupo divertido e barulhento, onde havia uma criança cheia de caracóis e uma mãe simpática e paciente, mas firme, que me adoptou de imediato, tomando conta da minha vida a partir desse dia. Trouxeram-me, então, para este novo lugar que seria a minha futura casa. Não nego que me custou a separação, sobretudo da minha mãe, mas também do meu pai e dos meus irmãos, tão alegres e irrequietos como eu. No entanto, fui tão acarinhado e tratado com tal desvelo, que os mimos ajudaram rapidamente a ultrapassar esse desgosto.
Afeiçoei-me especialmente à mãe da menina dos caracóis – achei que sendo mãe de uma criança, também poderia ser uma espécie de mãe para mim. Por esse motivo, aproximei-me sobretudo dela, pelo que não sei se foi esta mãe humana que me adoptou ou se fui eu que a adoptei a ela, mas isso agora não tem grande importância. Nas primeiras noites dormi num cesto ao lado da sua cama e quando acordava assustado a meio da noite, o calor da sua mão na minha cabeça e no meu lombo acalmava-me. Também me lembro que rapidamente me comecei a habituar ao seu cheiro, que passei a distinguir de todos os outros cheiros, fazendo-me sentir mais seguro. Sempre que ela se afastava, gostava de me enroscar numa qualquer peça de roupa que lhe pertencesse, para substituir a sua presença. Foi por isso que um dia lhe roubei um casaco de malha encarnado que ela costumava usar e, num acesso de raiva, durante a sua ausência, rasguei-o em vários bocados, pelo que o casaco, já sem utilidade para ela, passou a pertencer-me por direito, até não restar mais do que um minúsculo farrapo, que eu insistia em transportar comigo, para onde quer que fosse. No dia em que o dito farrapinho desapareceu, de tão ínfimo que se tornara, atingi o estado adulto e deixei-me de dependências lamechas, embora continue a sentir uma ligação muito especial à minha dona. Esta história é relembrada ainda hoje e o meu gesto, entendido como uma prova de grande astúcia, é um facto de que muito me orgulho, assim como a afirmação, também muitas vezes repetida, de que a raça a que pertenço, Serra de Aires (cão pastor do Alentejo) é considerada a mais inteligente das raças portuguesas.
Durante estes 15 anos tive muitos amigos – o burro Jericó, que ajudei a recolher muitas vezes, e vários gatos, alguns já desaparecidos e que recordo com saudade, embora gostasse de os arreliar, obrigando-os a fugas vertiginosas pelos troncos do sicómoro do pátio. Tenho sobrevivido à maioria desses companheiros e lamento que tenham partido antes de mim. Refiro-me ao Rufino, ao velho Cavalinho de Pau, à Dalila, ao Sansão e, ultimamente, ao Sebastião, um simpático gato amarelo que muitas vezes me acompanhou nas sestas. Agora há por aí um cão novo, o Cacau, bastante imaturo, de quem fujo a sete pés e que me dá cabo do juízo com a sua irrequietude.
Os outros animais que aqui habitam, confesso que nunca me despertaram quaisquer sentimentos de amizade ou de admiração. São galinhas e patos que vivem num mundo à parte, no reduto das suas capoeiras, preocupados sobretudo, com aspectos comezinhos ligados à alimentação e pouco dados a relacionamentos mais profundos com outros seres.
Como qualquer cão que se preza, tive alguns inimigos na aldeia, um dos quais travou comigo a última grande luta corpo a corpo, graças à qual perdi um dos meus enormes dentes caninos, arma terrível de que me servi tantas vezes para atacar os meus rivais, pretendentes às minhas cadelas preferidas. Posso dizer, com uma certa vaidade, que fui o Rei da aldeia durante muitos anos e confesso que agora sinto uma certa humilhação por ter descido tão baixo. Por isso, ultimamente, evito sair à rua, mantendo-me discretamente afastado, atitude mais adequada a um velho alquebrado, como eu.
Ao longo da minha vida, já bastante longa para um cão, tenho naturalmente, sofrido alguns acidentes. Ainda conservo cicatrizes e padeço de algumas sequelas desses infortúnios, mas apesar de tudo, tenho sido bastante resistente. Sinto uma grande ligação a esta casa e às pessoas que aqui vivem e trabalham – considero-os como família. Se alguém se ausenta por um período de tempo mais prolongado, é com uma enorme alegria que os recebo quando chegam. Apesar das dores nos ossos, continuo a saltar à volta deles mal saem do carro e o meu ladrar, que eu sinto mais fraco e rouco, faz-se ouvir com entusiasmo nessas ocasiões.
Ainda não percebi bem o que me está a acontecer, mas ultimamente, dou por mim a olhar para os meus donos com uma enorme dedicação e sofro muito quando eles se afastam. A menina dos caracóis cresceu e parece-me sempre demasiado ocupada para se deter muito tempo a reparar em mim, mas as pessoas mais velhas da casa, a mãe e o pai – vou-lhes chamar assim – e as minhas queridas e dedicadas amigas Beatriz e Odete – parecem olhar-me com um misto de ternura e de tristeza, como se eu estivesse de partida. Porque será? Partir não está nos meus planos. Por mim, ficarei aqui para sempre.
Xico
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O meu Pipoca tem 17 anos, está connosco desde os 2 meses. Também não ouve, mal vêm mas ainda mantém o olfacto. A "dona" (a minha filha) já passa pouco tempo em casa, mas o Pipoca percebeu, desde o princípio, quem mandava cá em casa e quem o trataria sempre bem. Cão esperto, sempre colado às saias da minha mulher.
ResponderEliminarJJ