Quem somos

domingo, 21 de agosto de 2011

A Visita dos Primos


No princípio do mês, tivemos o prazer de ter connosco durante alguns dias, que nos pareceram curtos, os primos Maria e António Calheiros de Azevedo.
Além da boa companhia que nos fizeram, trouxeram consigo a alegria contagiante da Maria, que mesmo em momentos de maior fragilidade física, mantém um senso de humor incomparável, e o engenho e disponibilidade do António, excelente cozinheiro e bom conhecedor de especialidades gourmet.
Com estes ingredientes, não se podia pedir mais. Graças a eles, sem sairmos de casa, sentimo-nos em férias e conhecemos e apreciámos algumas especialidades gastronómicas, que o António preparava num abrir e fechar de olhos, sempre bem disposto, revelando dotes invejáveis, sobretudo para quem, como eu, se sente um pouco cansada e sem imaginação para preparar as refeições.
Nesses dias tínhamos hóspedes no hotelzinho. Também eles tiveram ocasião de partilhar connosco alguns desses momentos, saboreando o pão caseiro, cozido aqui mesmo, os enchidos da região, assados na brasa, as belas saladas de tomate e de alface, agradavelmente coloridas com ervinhas de sabor mediterrânico, os biqueirões do Algarve bem envinagrados, o rabo de boi estufado em vinho tinto, acompanhado de abóboras e de grão, a sopa de beldroegas com queijos e ovos escalfados, a tarte de legumes feita com natas de aveia e especiarias, os morangos silvestres e a nossa sobremesa habitual de gelado com figos em calda.
O vinho não foi esquecido e do frisante branco aos tintos, fizemos diversas provas, tendo concluído pela excelência de alguns deles.
Os almoços, servidos numa mesa ao ar livre, à sombra dos pinheiros e não longe da piscina, eram habitualmente observados pelo olhar atento e expectante dos gatos, na esperança de que alguma coisa sobrasse para eles, saturados que estão da sua comida habitual.
Desta temporada de agradável convívio e refeições saudáveis, preparadas sobretudo com legumes provenientes da agricultura biológica, segue-se uma breve reportagem fotográfica que eu fui buscar ao álbum que a prima Maria criou, com o sugestivo título de “Dias de Paz na Casa da Caldeira”.
E, à laia de nota, para quem quiser passar uns dias na Casa da Caldeira, fica também a esperança de que a sua estadia coincida com uma visita do primo António Calheiros de Azevedo. Isso é que era sorte!








sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A Alma da Casa


Esta não é a casa onde nasci.
A Casa onde nasci tinha grandes janelas de velhas vidraças, que em certas zonas distorciam as imagens lá de fora.
Numa das salas entre paredes forradas de tecido, havia quatro Anjos, sentados em volta de uma mesa com uma jarra cheia de hortenses.
Havia portas altas e castanhas, que rangiam no rés do chão. No primeiro andar eram mais leves e soltas e abriam-se para os quartos onde à noite se recolhiam os Anjos para descansarem nas suas camas de linho imaculado.
Os outros habitantes da casa não eram anjos – havia adultos e crianças, como eu, e estavam num nível mais terreno – às vezes tinham pensamentos feios, mas também se apaixonavam, afadigavam-se em torno de tarefas muito prosaicas, irritavam-se e eram capazes de dizer palavras desagradáveis que podiam ferir.
Na casa onde eu nasci, havia salas com nomes: sala do piano, sala de costura, sala de jantar, sala de espera, sala de pensos/consultório. Era uma casa/hospital, onde nos tratavam das maleitas com mezinhas antigas. Por vezes, o tratamento era uma conversa a meia voz, ao colo de um dos Anjos, que sabia exactamente o que dizer na altura própria ou que apenas esboçava um gesto para travar as lágrimas, quando estas teimavam em nos saltar dos olhos.
Na casa onde eu nasci, havia gatos esquivos e cães que conheciam a linguagem e o olhar dos Anjos e dos outros habitantes. Havia um quarto decorado em tons de cor de rosa, com duas camas e colchas tecidas, de rosetas feitas com trapinhos brancos parecidos com confeitos. Aí, o sol nascia todas as manhãs pela frincha das portadas, cuja idade era disfarçada pelas sucessivas camadas de tinta clara. Era um sol especial, com longos braços, que me puxava para fora da cama e conduzia os meus passos até ao jardim.
O chão da minha casa cheirava a cera e era polido às sextas-feiras por uma mulher de olhar doce, pequena e franzina que falava a cantar.
A casa onde eu nasci tinha uma alma grande, que era a soma das almas dos Anjos e dos que não eram anjos. As almas dos que ali tinham vivido outrora haviam-se colado às paredes, aos móveis e aos objectos. Faziam assim, parte integrante da alma grande da casa. E sempre que eu saía, levava essa alma comigo.
Às vezes, essas velhas almas revelavam-se através de pequenas histórias contadas ao redor da mesa do chá, por entre o tilintar das colheres. Também surgiam, de repente, no sabor de um prato que se comia com um misto de curiosidade e de prazer: uma sopa de castanhas, uma carne de vinha de alhos, um leite creme… Era assim que íamos incorporando na nossa, as almas dos bisavós, que viviam em retratos pendurados na parede da sala. E ao olhá-los, sentia que os tinha conhecido e coabitado com eles. As paredes e os objectos falavam uma linguagem que eu conhecia. De olhos fechados, identificava o cheiro particular de cada habitante. Os Anjos usavam perfumes comprados avulso, todos diferentes uns dos outros, que depois vertiam para frasquinhos servindo-se de um minúsculo funil. Os lencinhos delicados que habitualmente guardavam, de forma discreta, na manga, estavam impregnados desses singulares cheiros, para mim inconfundíveis. Os que não eram anjos cheiravam a diversas coisas – tabaco de cachimbo, verniz das unhas, madeira de sândalo, maçãs bravo de esmolfe, alho, alfazema, cera, benzina de limpar os fatos ou sabão de alcatrão, que tornava os cabelos sedosos …
Na casa onde nasci havia um sótão com objectos mágicos, uns guardados, outros esquecidos. Podiam ser livros, caixas de sapatos cheias de casulos, abandonados nas suas teias macias de fios de seda, uma vez concluído o ciclo dinâmico das metamorfoses, cartas de amor, malas com roupa – velhos espartilhos, casaquinhas de veludo puído, roupa de carnaval, uma farda militar, religiosamente envolvida em papel de seda, em memória do avô que morrera antes dos trinta anos, aquele jovem bonito, cuja fotografia na mesa de cabeceira da avó tanta confusão me fazia – sentia-me estranha. Não achava normal ter-se um avô tão novo.

Um destes dias, a minha prima Maria, que veio estar comigo e que passou a sua infância e adolescência perto de nós, a entrar e a sair daquela antiga casa, dizia-me, olhando em volta: “Esta casa (a minha casa actual) lembra-me a casa dos Casais (Casais do Campo, onde ficava a outra casa). E eu, espontaneamente, quase sem pensar, respondi-lhe: “Sabes, é a Alma! Veio com os objectos que trouxe de lá! E veio comigo, ”acrescentei.
Ficámos caladas, a pensar. Não lhe perguntei, mas sinto que naquele momento, no meio daquele silêncio, tanto ela como eu, reconhecemos que, enquanto tivermos memória, levaremos connosco, para onde quer que vamos, a tal Alma da casa onde nascemos ou crescemos. Para nós, é uma Alma enorme, que abarca a nossa infância, todos os sons e todos os cheiros, que abarca aqueles que mais amamos e que nos acompanharam, os que apenas viviam nos retratos e as inúmeras histórias que vivemos ou que ouvimos contar.

Gostava tanto que um dia, a minha filha, para onde quer que vá, possa levar consigo a Alma desta casa. Esta, onde agora vivemos. Seria bom sinal.

A.Braga

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Memórias de um Cão


Sinto-me velho, trôpego e sem forças. Os meus olhos e os meus ouvidos traem-me constantemente - não percebo quando me chamam, não distingo o tom em que me falam, nem sequer consigo vislumbrar qual a porta por onde devo entrar ou sair de casa. O próprio olfacto já não se compara com o que era, sendo agora necessário aproximarem-me do nariz os bocados de comida, que dantes eu identificava a metros de distância. Às vezes sinto-me inexplicavelmente confuso e assustado, tremo convulsivamente, descontrolo-me e não sei onde estou nem reconheço os que me rodeiam. Depois passa, mas demoro bastante tempo a recompor-me e fico esgotado, como se alguém me tivesse maltratado.
Passo grande parte do dia a dormir e tenho sobressaltos durante o sono - dizem que gemo, numa espécie de choro aflito e ritmado. Tenho memórias vagas, mas assustadoras, desses pesadelos: prendem-me, sou levado para longe daqueles a quem me afeiçoei, percorro cenários que não conheço, paisagens desertas, sem gente nem bichos, terra queimada, inóspita, e sinto saudades das caras conhecidas e do conforto da casa a que me habituei e onde me sinto tão seguro. Fico aterrado, sobretudo por ter de enfrentar o desconhecido, depois de tantos anos a viver num lugar acolhedor, onde sempre me movimentei com à vontade e onde todos se mostram simpáticos e compreensivos.
Sempre gostei da rotina dos meus dias nesta casa de campo, conseguindo aliar o conforto e a estabilidade a uma vida livre, de corajoso aventureiro, certo de poder contar no regresso das minhas deambulações pela aldeia, com um bom prato de comida, umas festas e um canto confortável para descansar, mesmo sabendo que às vezes me esperava um ralhete, por parte de quem se preocupou desde sempre com a minha segurança.
Nasci há 15 anos, num dia de Primavera, numa pequena aldeia aninhada nas faldas da Serra de Aire. Dois meses depois, apareceu por lá um grupo divertido e barulhento, onde havia uma criança cheia de caracóis e uma mãe simpática e paciente, mas firme, que me adoptou de imediato, tomando conta da minha vida a partir desse dia. Trouxeram-me, então, para este novo lugar que seria a minha futura casa. Não nego que me custou a separação, sobretudo da minha mãe, mas também do meu pai e dos meus irmãos, tão alegres e irrequietos como eu. No entanto, fui tão acarinhado e tratado com tal desvelo, que os mimos ajudaram rapidamente a ultrapassar esse desgosto.
Afeiçoei-me especialmente à mãe da menina dos caracóis – achei que sendo mãe de uma criança, também poderia ser uma espécie de mãe para mim. Por esse motivo, aproximei-me sobretudo dela, pelo que não sei se foi esta mãe humana que me adoptou ou se fui eu que a adoptei a ela, mas isso agora não tem grande importância. Nas primeiras noites dormi num cesto ao lado da sua cama e quando acordava assustado a meio da noite, o calor da sua mão na minha cabeça e no meu lombo acalmava-me. Também me lembro que rapidamente me comecei a habituar ao seu cheiro, que passei a distinguir de todos os outros cheiros, fazendo-me sentir mais seguro. Sempre que ela se afastava, gostava de me enroscar numa qualquer peça de roupa que lhe pertencesse, para substituir a sua presença. Foi por isso que um dia lhe roubei um casaco de malha encarnado que ela costumava usar e, num acesso de raiva, durante a sua ausência, rasguei-o em vários bocados, pelo que o casaco, já sem utilidade para ela, passou a pertencer-me por direito, até não restar mais do que um minúsculo farrapo, que eu insistia em transportar comigo, para onde quer que fosse. No dia em que o dito farrapinho desapareceu, de tão ínfimo que se tornara, atingi o estado adulto e deixei-me de dependências lamechas, embora continue a sentir uma ligação muito especial à minha dona. Esta história é relembrada ainda hoje e o meu gesto, entendido como uma prova de grande astúcia, é um facto de que muito me orgulho, assim como a afirmação, também muitas vezes repetida, de que a raça a que pertenço, Serra de Aires (cão pastor do Alentejo) é considerada a mais inteligente das raças portuguesas.
Durante estes 15 anos tive muitos amigos – o burro Jericó, que ajudei a recolher muitas vezes, e vários gatos, alguns já desaparecidos e que recordo com saudade, embora gostasse de os arreliar, obrigando-os a fugas vertiginosas pelos troncos do sicómoro do pátio. Tenho sobrevivido à maioria desses companheiros e lamento que tenham partido antes de mim. Refiro-me ao Rufino, ao velho Cavalinho de Pau, à Dalila, ao Sansão e, ultimamente, ao Sebastião, um simpático gato amarelo que muitas vezes me acompanhou nas sestas. Agora há por aí um cão novo, o Cacau, bastante imaturo, de quem fujo a sete pés e que me dá cabo do juízo com a sua irrequietude.
Os outros animais que aqui habitam, confesso que nunca me despertaram quaisquer sentimentos de amizade ou de admiração. São galinhas e patos que vivem num mundo à parte, no reduto das suas capoeiras, preocupados sobretudo, com aspectos comezinhos ligados à alimentação e pouco dados a relacionamentos mais profundos com outros seres.
Como qualquer cão que se preza, tive alguns inimigos na aldeia, um dos quais travou comigo a última grande luta corpo a corpo, graças à qual perdi um dos meus enormes dentes caninos, arma terrível de que me servi tantas vezes para atacar os meus rivais, pretendentes às minhas cadelas preferidas. Posso dizer, com uma certa vaidade, que fui o Rei da aldeia durante muitos anos e confesso que agora sinto uma certa humilhação por ter descido tão baixo. Por isso, ultimamente, evito sair à rua, mantendo-me discretamente afastado, atitude mais adequada a um velho alquebrado, como eu.
Ao longo da minha vida, já bastante longa para um cão, tenho naturalmente, sofrido alguns acidentes. Ainda conservo cicatrizes e padeço de algumas sequelas desses infortúnios, mas apesar de tudo, tenho sido bastante resistente. Sinto uma grande ligação a esta casa e às pessoas que aqui vivem e trabalham – considero-os como família. Se alguém se ausenta por um período de tempo mais prolongado, é com uma enorme alegria que os recebo quando chegam. Apesar das dores nos ossos, continuo a saltar à volta deles mal saem do carro e o meu ladrar, que eu sinto mais fraco e rouco, faz-se ouvir com entusiasmo nessas ocasiões.
Ainda não percebi bem o que me está a acontecer, mas ultimamente, dou por mim a olhar para os meus donos com uma enorme dedicação e sofro muito quando eles se afastam. A menina dos caracóis cresceu e parece-me sempre demasiado ocupada para se deter muito tempo a reparar em mim, mas as pessoas mais velhas da casa, a mãe e o pai – vou-lhes chamar assim – e as minhas queridas e dedicadas amigas Beatriz e Odete – parecem olhar-me com um misto de ternura e de tristeza, como se eu estivesse de partida. Porque será? Partir não está nos meus planos. Por mim, ficarei aqui para sempre.
Xico