Quem somos
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
A Alma da Casa
Esta não é a casa onde nasci.
A Casa onde nasci tinha grandes janelas de velhas vidraças, que em certas zonas distorciam as imagens lá de fora.
Numa das salas entre paredes forradas de tecido, havia quatro Anjos, sentados em volta de uma mesa com uma jarra cheia de hortenses.
Havia portas altas e castanhas, que rangiam no rés do chão. No primeiro andar eram mais leves e soltas e abriam-se para os quartos onde à noite se recolhiam os Anjos para descansarem nas suas camas de linho imaculado.
Os outros habitantes da casa não eram anjos – havia adultos e crianças, como eu, e estavam num nível mais terreno – às vezes tinham pensamentos feios, mas também se apaixonavam, afadigavam-se em torno de tarefas muito prosaicas, irritavam-se e eram capazes de dizer palavras desagradáveis que podiam ferir.
Na casa onde eu nasci, havia salas com nomes: sala do piano, sala de costura, sala de jantar, sala de espera, sala de pensos/consultório. Era uma casa/hospital, onde nos tratavam das maleitas com mezinhas antigas. Por vezes, o tratamento era uma conversa a meia voz, ao colo de um dos Anjos, que sabia exactamente o que dizer na altura própria ou que apenas esboçava um gesto para travar as lágrimas, quando estas teimavam em nos saltar dos olhos.
Na casa onde eu nasci, havia gatos esquivos e cães que conheciam a linguagem e o olhar dos Anjos e dos outros habitantes. Havia um quarto decorado em tons de cor de rosa, com duas camas e colchas tecidas, de rosetas feitas com trapinhos brancos parecidos com confeitos. Aí, o sol nascia todas as manhãs pela frincha das portadas, cuja idade era disfarçada pelas sucessivas camadas de tinta clara. Era um sol especial, com longos braços, que me puxava para fora da cama e conduzia os meus passos até ao jardim.
O chão da minha casa cheirava a cera e era polido às sextas-feiras por uma mulher de olhar doce, pequena e franzina que falava a cantar.
A casa onde eu nasci tinha uma alma grande, que era a soma das almas dos Anjos e dos que não eram anjos. As almas dos que ali tinham vivido outrora haviam-se colado às paredes, aos móveis e aos objectos. Faziam assim, parte integrante da alma grande da casa. E sempre que eu saía, levava essa alma comigo.
Às vezes, essas velhas almas revelavam-se através de pequenas histórias contadas ao redor da mesa do chá, por entre o tilintar das colheres. Também surgiam, de repente, no sabor de um prato que se comia com um misto de curiosidade e de prazer: uma sopa de castanhas, uma carne de vinha de alhos, um leite creme… Era assim que íamos incorporando na nossa, as almas dos bisavós, que viviam em retratos pendurados na parede da sala. E ao olhá-los, sentia que os tinha conhecido e coabitado com eles. As paredes e os objectos falavam uma linguagem que eu conhecia. De olhos fechados, identificava o cheiro particular de cada habitante. Os Anjos usavam perfumes comprados avulso, todos diferentes uns dos outros, que depois vertiam para frasquinhos servindo-se de um minúsculo funil. Os lencinhos delicados que habitualmente guardavam, de forma discreta, na manga, estavam impregnados desses singulares cheiros, para mim inconfundíveis. Os que não eram anjos cheiravam a diversas coisas – tabaco de cachimbo, verniz das unhas, madeira de sândalo, maçãs bravo de esmolfe, alho, alfazema, cera, benzina de limpar os fatos ou sabão de alcatrão, que tornava os cabelos sedosos …
Na casa onde nasci havia um sótão com objectos mágicos, uns guardados, outros esquecidos. Podiam ser livros, caixas de sapatos cheias de casulos, abandonados nas suas teias macias de fios de seda, uma vez concluído o ciclo dinâmico das metamorfoses, cartas de amor, malas com roupa – velhos espartilhos, casaquinhas de veludo puído, roupa de carnaval, uma farda militar, religiosamente envolvida em papel de seda, em memória do avô que morrera antes dos trinta anos, aquele jovem bonito, cuja fotografia na mesa de cabeceira da avó tanta confusão me fazia – sentia-me estranha. Não achava normal ter-se um avô tão novo.
Um destes dias, a minha prima Maria, que veio estar comigo e que passou a sua infância e adolescência perto de nós, a entrar e a sair daquela antiga casa, dizia-me, olhando em volta: “Esta casa (a minha casa actual) lembra-me a casa dos Casais (Casais do Campo, onde ficava a outra casa). E eu, espontaneamente, quase sem pensar, respondi-lhe: “Sabes, é a Alma! Veio com os objectos que trouxe de lá! E veio comigo, ”acrescentei.
Ficámos caladas, a pensar. Não lhe perguntei, mas sinto que naquele momento, no meio daquele silêncio, tanto ela como eu, reconhecemos que, enquanto tivermos memória, levaremos connosco, para onde quer que vamos, a tal Alma da casa onde nascemos ou crescemos. Para nós, é uma Alma enorme, que abarca a nossa infância, todos os sons e todos os cheiros, que abarca aqueles que mais amamos e que nos acompanharam, os que apenas viviam nos retratos e as inúmeras histórias que vivemos ou que ouvimos contar.
Gostava tanto que um dia, a minha filha, para onde quer que vá, possa levar consigo a Alma desta casa. Esta, onde agora vivemos. Seria bom sinal.
A.Braga
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Lindo, Ana!
ResponderEliminarConheço alguma coisa da Alma da tua casa e confirmo que é mesmo especial.
Um abraço,
Luiza
Também por lá andei, algumas vezes e confirmo, e ainda a sensação de grande e sombria que era!
ResponderEliminarTia também tenho recordações da casa dos Casais, apesar de eu ser muito pequenina na altura. Mas há sempre coisas que não se esquecem e sinto exactamente o mesmo que escreveu em relação à casa do Penedo. Beijo grande, adorei o texto
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