Esta noite festeja-se o S.
João, que tão boas recordações de infância me traz.
Este ano, muito sensatamente, foi proibído o lançamento de balões, pelos motivos óbvios, mas no passado essa tradição cumpria-se sempre e não tenho memória de algum dia ter havido incêndios provocados pelos balões, pelo menosna zona onde eu vivia.
Depois do Natal, acho que esta
seria, talvez para mim, a data mais excitante do calendário. Durante o dia
vivíamos uma grande azáfama: recolhíamos material de queima para a fogueira,
recortávamos bandeiras em papel de seda de várias cores e fazíamos cola com
farinha e água, que depois espalhávamos com um pauzinho no topo de cada
bandeira, para as enfileirarmos finalmente, em muitos metros de guita. Em
seguida, com a ajuda de um escadote e de alguém adulto, prendíamos as
extremidades dos cordéis aos ramos das árvores e a pregos que tinham sido estrategicamente
espetados nas paredes e que ficavam de uns anos para os outros.
Era assim, que o “largo” do
jardim, em frente da garagem, se engalanava para a festa do S.João.
Algures, longe da vista e do
alcance dos mais novos guardava-se o fogo-de-artifício que os meus pais tinham
comprado uns dias antes em Lisboa, numa loja que ainda hoje existe, na Travessa
Nova de S. Domingos.
O fogo-de-artifício e, claro, um
enorme balão – objecto fascinante, mágico, cheio de mistério, pelo destino que
lhe reservávamos de rumar ao desconhecido. A minha pouca idade levava-me a
pensar que o balão seria uma espécie de embaixador, que nessa noite iriamos
enviar para distantes paragens, mas nunca partilhei estes pensamentos com
ninguém (aqui, ninguém, seriam os meus irmãos). No fundo, talvez me sentisse na
dúvida, sem saber se tal facto era uma evidência indiscutível ou se as minhas
convicções não tinham qualquer fundamento. Se assim fosse, passaria então a ser
o alvo da troça dum bando de garotos insuportáveis e ainda por cima mais velhos,
durante um período de tempo indeterminado.
À distância de muitos anos, ainda
hoje me recordo da agitação interior que me assaltava ao longo do dia – andava num frenesim. Toda a
família e vizinhos participavam na festa. Até as tias velhinhas e a avó
assistiam, muito cautelosas, sentadas lado a lado, ao abrigo da parede da casa
e a uma distância razoável da confusão, não fosse saltar alguma faúlha
tresmalhada do feixe das labaredas ou rebentar algum foguete, que as pusesse em
perigo.
Depois do jantar, ainda de dia,
ligava-se o rádio ou o gira discos com o som suficientemente alto, para que a
vizinhança percebesse que se tinha dado início aos festejos. Entretanto, algum
adulto acendia a fogueira e o grupo ia engrossando. Saltava-se então por cima
das labaredas – os rapazes, com pulos arriscados e exibicionistas, nós, as
meninas, circulando mais pelas laterais, com pinotes desajeitados e
disfarçadamente batoteiros.
Os jovens - as moçoilas e os
mancebos - aproveitavam geralmente para dar o seu pé de dança, já que na aldeia
eram escassas as oportunidades de estabelecerem um contacto físico mais próximo,
sem que dezenas de velhas lhes saltassem em cima.
Lembro-me que as raparigas também
queimavam alcachofras, que depois de pernoitarem ao relento, eram devidamente
inspeccionadas para se verificar se haviam florescido de novo e qual o grau de
esperança que cada jovem casadoira podia ter quanto ao seu futuro amoroso.
Num dos anos, até houve sessão de
cinema.
O Sr. Joaquim Latoeiro, homem
bonacheirão e vermelhusco, que vivia na mesma rua mas um pouco acima da nossa
casa, possuidor de uma moto a que chamávamos Cocciolo – presumo que seria o
nome do seu inventor -, comprada em 4ª mão, no mínimo, e que emitia roncos
inigualáveis todo o santo dia estrada acima, estrada abaixo, apareceu de
surpresa, com uma máquina de projectar filmes, fruto de um negócio de êxito
duvidoso, como era seu costume.
Esta máquina tinha uma
particularidade, só ostentava uma bobina, onde a película estava enrolada, de
modo que o filme ía rodando, aos solavancos, com a ajuda vigorosa dos seus
golpes de manivela, para depois se precipitar dentro de um cesto que alguém
providenciara para o efeito.
O Joaquim Latoeiro apareceu
impante, com a sua engenhoca e logo ali, na nossa garagem, se improvisou uma
sala de cinema. O meu irmão, que na altura nem sequer ainda andava no liceu,
mas já sabia conduzir, tirou o Renault Joaninha cá para fora. Penduraram um
lençol na parede, alinharam cadeiras e bancos numa plateia improvisada e lá
passámos parte do serão a ver o Charlot, o Bucha e o Estica, o Buster Keaton. Um
fartote de riso!
Foi uma verdadeira noite
cinéfila, melhor do que as idas às matinées da FNAT e, no fim do serão, o
Joaquim Latoeiro levou para casa, não um vulgar cesto, mas um poceiro da
vindima, uma coisa gigantesca, cheia de metros de película toda emaranhada.
Ainda hoje estou para perceber se o pobre homem alguma vez conseguiu rebobinar
aquelas preciosidades. Mas o certo é que ia feliz.
Aliás, desconfio que este curioso
personagem se regozijava com pequenos prazeres, momentos únicos, mesmo que
fugazes, preocupando-se mais com o
presente do que com o futuro, apesar de
andar sempre falido. Tinha uma bigodaça loira, farfalhuda e uma tonalidade nas
faces que não deixava dúvidas quanto ao seu gosto pelo tintol. Tenho ideia de
que a mulher era uma criatura sofrida, na altura eu não entendia bem porquê,
pois se o homem era tão divertido, sempre cheio de ideias geniais! E além disso
ela tinha a sorte de poder andar sempre que quisesse num Cocciolo, coisa de que
eu sentia imensa inveja, confesso.
O fim da noite de S.João
culminava, invariavelmente com o lançamento de um balão. Esta tarefa era um
ritual que se revestia de grande solenidade e a “sacerdotisa” era a minha mãe,
acolitada pelo Sr. José Ramos, empregado do meu tio e seu companheiro de caça e
dos jogos de lerpa.
Eu era tão pequena, mas tão
pequena, que achava que deitar um balão exigia requisitos especiais. A tarefa
tinha de ser executada, por um lado, por
alguém especialmente dotado, neste caso a minha mãe e, simultaneamente, por um
ajudante devidamente preparado para tarefas especializadas, como matar porcos
(era o Sr. José Ramos que também matava o porco em casa do meu tio). Não
percebia bem era a ligação entre uma coisa e outra, mas estava certa que lançar
balões e matar porcos exigiam um tipo de perícia que se enquadrava no mesmo
plano.
Por exemplo, o meu pai nem tocava
no balão, acho que estava proibido, não sei bem porquê!? Talvez isso se devesse
a uma outra história, quando nos prometeu fazer um papagaio e, depois de vários
dias a construí-lo com grande entusiasmo, explicações teóricas várias e alusões
históricas, onde decerto não faltaram referências a Ícaro, coisas que a gente
não dominava muito bem, o lançou direito aos fios da electricidade da rede
pública, onde ficou preso durante anos, a desafiar-nos com a sua cor amarelo
berrante.
Mas voltemos ao balão.
Ainda parece que estou a ver a
minha mãe, muito ágil, a subir a um escadote, segurando o balão com delicadeza,
enquanto o ajudante, igualmente empoleirado, segurava também aquele objecto
grande, redondo, quase etéreo.
O grande problema era a mecha, a
perigosa mecha que nunca se podia aproximar da fina parede do balão, sob pena
de o queimar logo ali. Havia uns segundos de grande suspense, tudo mergulhado
num profundo silêncio, momentos em que o grau de precisão tinha de ser
absoluto.
Finalmente, o balão enchia-se de
ar quente e lá se elevava nos céus, no meio de grandes exclamações de regozijo
e então eu sentia ao mesmo tempo uma alegria imensa pelo sucesso da empreitada mas
também sentia pena. Pena por ver o balão a desaparecer na escuridão da noite,
por achar que algo que fazia parte de nós se desprendia, partia para longe –
uma espécie de balão humanizado, digamos. E sentia vontade de chorar.
Passei a infância nisto – a
apreciar os bons momentos e a lamentar que eles tivessem um fim.
Ana Braga